Cristina Judar

(RE)NASCIMENTO

      Como uma bolsa no avesso, eu respondia suas perguntas enfatizando pontos sem nenhuma importância. Eu sabia de tudo, mas não tinha a mínima ideia do que dizer, então voava. Enquanto fazia os toasts no toaster de marca secundária que você me deu. Até o topo do mundo eu subia como água, vazava como águia. 
      E ainda tive que me preocupar com o peso de porta, escorriam arroz e areia pela cloaca da galinha de feltro que já fora bem mais pesada, uma verdadeira comporta de portas, enquanto o vento estuprava nossas paredes de apartamento gasto. Eu fazia que não ouvia o som que passava pelas frestas das janelas, mas estava morta de medo. Você mentia dizendo o que era verdade e eu procurava uma forma de me esconder dos sentimentos que brotavam dessa conversa. Afinal, as passagens para cenas de escárnio com outras pessoas, abraços e beijos atrás de moitas, piscadelas e navalhadas de cortar o luar em dois me perseguiam mentalmente. Um filminho mudo e preto e branco passava pela minha cabeça. 
      Fui até a geladeira, determinada a jogar um pouco de cor na situação. Peguei o frasco de mapple syrup, pelo qual pagamos one dollar and 99 cents na Jack's World, sendo que aqui em São Paulo um vidro desse não sai por menos de 45 reais. Despejei a lava doce sobre os toasts, com o desejo desesperado de que aquele conteúdo transparente entrasse pelo meu chackra coronário, me preenchendo de luz sábia solar. O apartamento, que já estava meio sem cor, igualmente. Nessa minha ficção do abismo, a galinha de feltro engoliria o mapple syrup com prazer, que escaparia pela sua cloaca e invadiria o chão. Eu limparia a sujeira com um tapete artesanal brasileiro. 
      Comi tudo, sem oferecer a você, e decidi ir para o quarto tirar a camisola de anágua para vestir uma combinação de veludo verde garrafa, minhas meias eram cor da pele sobre a minha pele, iam até o joelho. Combinavam com os azulejos - quadrado laranja sim, quadrado laranja não - de nossa cozinha. E com o piso de tacos, na sala. Ou melhor, com a luminária de lava cor de uva que eu trouxe de Orlando, na mala de mão. Junto com a bota sintética de plataforma anabela, que descascou depois.
      Eu, arrumada, saímos para jantar como quem está prestes a romper o relacionamento, com aquele ar de "nada está acontecendo" que as pessoas que estão prestes a terminar relacionamentos costumam ter. Pedimos sushi em um restaurante japonês franqueado, com luz tremeluzente, me senti como se estivesse prestes a ter um derrame. O orientei a pegar o primeiro táxi, me levar direto para o hospital, caso eu passasse mal. Depois, pedimos shimeji. Queimei a língua, a chapa estava quente.
      As frutas da capirinha de saquê giravam no copo como em uma roda viva gigante, foi aí que a conversa chegou ao ponto delicado: precisava te comunicar que eu estava grávida - não de um disco, livro ou filme, mas de uma cápsula capaz de implodir mulheres loiras situadas a um raio de 50 metros de distância. Não qualquer loira, mas daquelas que de tempos em tempos usam uma toca de borracha com furinhos, pelos quais tufos de cabelos são içados para então serem descoloridos. E elas então pudessem ser loiras. Ou algo próximo disso. A cápsula, quando fosse expelida do meu corpo ao término da gestação, também exterminaria mulheres portadoras de capacetes de ferro (a cabeça, sempre a cabeça!), com mil e um tentáculos em forma de alicate, que matavam ideias, capturando-as assim no ar assim que eram projetadas, segundos antes de surtirem algum efeito no mundo e na vida de suas idealizadoras. 
      Você ouviu tudo em silêncio e foi muito, muito legal. Apesar de todos os riscos, não me induziu a fazer um aborto. A paternidade materna lhe caiu bem. Com lágrimas nos olhos, apenas afagou o meu ombro e, com um sorriso de parque de diversões, me ajudou a acabar com as frutas maceradas do fundo do copo, que foram içadas com dificuldade por aquela coisinha de plástico preto usada para misturar a bebida. Ao final, nos sentimos vencedores. Nada havia restado além de um pedaço seco de gelo. Pedimos a conta, depois um táxi. Ao fundo, tocava Sinatra. Chegamos. Ao descer do veículo, senti uma fisgada do lado direito do útero. Intuí que provavelmente seria meu filho, me alertando que as cloacas não são uma exclusividade anatômica das galinhas.