Entrevista - Marcelo Ariel



Quem é Marcelo Ariel?
Ainda não é o ser, o nada por ser impossível também não se relaciona com o ser, esta questão atravessa toda a primeira e inconclusa parte do livro SER E TEMPO de Heidegger, um livro para as crianças. O nome não pode conter o ser que é de fato o tecido primordial do sonho, existe a teoria de que o mundo começou com uma explosão, um momento acaba de entrar uma mariposa na sala, antes da explosão e depois possivelmente havia uma entropia similar a uma metáfora, e antes da entropia-metáfora, o que havia? Estamos explodindo junto com o Sol ou na direção do Sol? Onde fica ‘Ao Sul do paraíso’? Há um poema de Benn, amo o verso final dele, Benn escreveu em uma carta dizendo que via nestes versos o espirito brincando dentro da carne e do sangue, brincando de morrer, reproduzo o poema inteiro abaixo, sabendo que irei fugir de uma resposta para esta questão:

Homem e mulher passam pelo pavilhão de cancerosos

O homem:
A fila aqui são ventres podres
e aquela, peitos podres. Cama fede junto
a cama. As enfermeiras trocam de hora em hora.

Vem, ergue devagar esta coberta.
Olha: esta massa gorda com humores podres
já foi querida outrora por um homem,
era seu êxtase e seu lar.

Vêm, olha as chagas neste peito. Notas
o rosário de nós pequenos, moles?
Apalpa. A carne é mole e nada sente.

Esta outra sangra como que de trinta corpos.
Ninguém tem tanto sangue.
Tiveram que cortar,
daquele corpo canceroso uma criança.

Que durmam. Dia e noite. — Diz-se aos novos:
o sono aqui faz bem. — Mas aos domingos
deixam-nos acordar, para as visitas.

Comem um pouco. Suas costas cobrem-se
de chagas. Olha as moscas. A enfermeira,
às vezes, lava-os. Como se lavasse um banco.

A cova aqui já ronda cada cama.
A carne desce à lama. A chama some.
A seiva se derrama. A terra chama.

- Gottfried Benn
(tradução de Nelson Ascher)
in Poesia Alheia, Editora Imago


Tua poesia é rica em elementos místicos. Acredita que a poesia pode ocupar o lugar da religião?
Espero que não. Novalis dizia que a poesia era a religião original da humanidade, se referindo talvez a uma época em que não havia necessidade de religiões, de qualquer modo ‘o deus‘ de hoje é a fantasmagorização.


Tu diz que o vazio é um lugar de criação. Muitas pessoas se queixam dizendo ser um lugar de infertilidade artística. O que tu acha que falta nesses casos?
O grande vazio é o lugar da criação, o pequeno vazio não, o pequeno vazio é apenas um sintoma da dispersão.


Muitos poetas também dizem que a escrita não combina com a felicidade. Como é pra ti? Você se considera feliz? Acredita nesse tipo de avaliação? A tua escrita se dá em que momento?
Dora Ferreira da Silva, um dos meus ‘Daimons‘ ensinava que quando escrevemos um bom poema uma guerra deixa de acontecer em algum lugar, acrescento que ‘O céu é sustentado por um poema’, felicidade como verdade são palavras que nada significam para mim, prefiro ser tocado por um êxtase da gratuidade como este de respirar ou o de tomar um copo de água ou o de beijar alguém que você ama religiosamente no sentido laico da coisa. Escrevo quando tenho a plena certeza de que estou fora da literatura, na matéria bruta e inominável do viver brotam êxtases da gratuidade do mundo, nos intervalos destes êxtases anuladores de qualquer importância, inclusive capazes de apagar nosso rosto, quando o rosto se apaga, é a hora de começar a doença da escritura, mas a maioria dos escritores não consegue perceber este momento em que seu rosto se apaga para que o mundo possa acontecer, não conseguem nem o truque barato de apagar o próprio nome, me incluo entre os que tentam sem sucesso ‘este apagamento sublime‘.


Você diz também que todo homem com grande sombra tem grande luz. Tu mesmo parece transitar para além da moralidade nesses dois aspectos da alma. A poesia te transformou como pessoa nesses aspectos? Você pode dizer que ela te salvou? 
Não quero ser salvo pela poesia, mas tenho a vaidade de querer salvar, quero salvar e não ser salvo, Nietzsche possui um aforisma onde diz “Não ore, abençoe‘, é isto, quero abençoar o irremediável, há um limite que pretendo ultrapassar, já não sonho com a santidade, mas com a pureza e com a gratuidade, principalmente a do amor. Quem ainda mantém em si a fé no amor puro? 


Você tem uma alma inquieta, produz poesia mesmo fora do papel, conversando, na forma de agir. É um poeta para além das palavras. Há um momento de silêncio no Marcelo? Se há, o silêncio às vezes pode ser um problema? 
Quando eu morrer haverá silêncio, mas não serei mais humano.


Você é socialmente muito atento e engajado. Considera a poesia de hoje muito introspectiva, egocêntrica? O processo da escrita pra ti é olhar pra si ou olhar para o mundo?
Será ‘olhar para o Outro’ o que dará no mesmo, o Outro, você e o Mundo deveriam ser uma só coisa. Algumas correntes da Cabala chamam Azrael, o anjo da morte de ‘O unificador’, acho a diversidade, multiplicidade do mundo um sonho, resta saber se acordaremos algum dia para a fusão do um em um.


Você trabalha com imagens fortes. Poetas geralmente o fazem, mas tu em especial. Há um projeto em que tu desenha árvores, certo? O que é esse projeto? A escrita é limitada, Marcelo?
Ah, O Livro Das Árvores que se chamava ‘O livro das árvores dentro do livro dos anjos sem nome‘, vai sair pela Editora Pharmakon do Daniel Kairoz. Quando estou distraído, o que equivale a um êxtase de sonho, gosto de desenhar árvores, deste êxtase nasceu a ideia. São justamente os limites da escrita que me fazem seguir em frente. Mas jamais saberei o que existe depois do indizível.


A vida prática nos arranca da poesia, muitas vezes. O cotidiano, as obrigações. Existe vida poética possível no mundo de hoje? 
Sim, mas a prática da vida deveria levar ao poema, se leva ao irremediável, deveria levar ao poema, ainda assim viver é uma cosmogonia, a relação entre viver e existir pode se tornar a mesma que existe entre a palavra e a coisa, é possível viver a vida como um poema, desde que o fim seja a busca de uma abertura, para vivermos outras metáforas.


Poesia é dom ou esforço?
O dom precisa ser vencido, começo e termino com Heidegger, a questão do ser é colocada pelo poema, na medida em que ele se afasta do senso comum.