Márcia Barbieri

A PUTA (trecho: às vezes, o homem)

Às vezes, o homem esquece que também é bicho, que também pode fazer um buraco e se enfiar dentro até que a tempestade passe. Os criminosos se esquecem que no escuro podemos enxergar o que está no claro, mas o inverso não é verdadeiro. Também foi assim que experimentei pela primeira vez o gosto peculiar da carne humana. O gosto, a textura. A nervura confundindo os dentes. O tutano despencando dos cantos da boca. Não imaginei que um dia eu provaria um ser da minha espécie, pior que isso, eu não imaginei que gostaria tanto. Posso dizer que só uma coisa se equiparou à sensação estonteante de mastigar a carne de um homem. O quê? A sensação que tive ao cheirar duas carreiras inteiras de cocaína e depois sentar em um pau. Você acha mesmo tão inaceitável o canibalismo? Não vejo nenhum absurdo nisso, o homem é um bicho como qualquer outro, com a diferença que é preciso tirar as peçonhas antes de mastigar. Alguém já chegou ao cúmulo de devorar o próprio feto? É um ritual em algumas tribos devorar-aniquilar o primogênito. Qual o espanto, afinal? Quantos animais já devorou com requintes de homem civilizado? É engraçado nosso hábito de se indignar, é quase uma reza decorada, uma ladainha, mas não há uma indignação real, é uma maquinaria, não temos a capacidade verdadeira de ter escrúpulos.