Davy Nabuco

RELATO QUARENTA

A cidade grita. Não sei ao certo e não estou numa posição confortável pra ouvir, mas acho que ela nunca deixa de gritar. Coisa nenhuma endossa as minhas conjecturas, especulo em cima de fantasias: na minha reclusão não passa nada. Mas eu prefiro que seja assim mesmo. Prefiro não escutar um só ruído e penso que seria pior se algo nesta vida me obrigasse a ter que sentir cada suspiro amargurado, cada argumento ferido, cada um dos sons expelidos pela maquinaria móvel que se alastra pelas ruas e repete sem cessar seus rangidos mecânicos misturados à fumaça suja. Juro que não quero escutar nem o sibilar do vento, ainda que por vezes eu o ache até bonito; nem palavras reconfortantes ditas por alguém que me importe. Nada. Agora mesmo eu só quero permanecer aqui sentado, inerte, assistindo eternamente aos padrões imprevisíveis que se desenham na espuma amarelada do café. Quero acreditar que eles devem se inserir em alguma escara razoável de significação. Não me entendam mal, conheço o que dizem aí, que o que pode ser lido é a borra. Por mim, posso aceitar, mas não gosto dos métodos limitadores e tenciono jogá-la sempre fora: resíduos são sinceros demais; e a ideia de sair da estase e mexer a espuma indefinidamente me parece mais agradável. É certo que desperdiçarei o conteúdo - o amargor sem calidez não me atrai nem um pouco -, mas pelo menos assim eu posso ter algum resquício de esperança de ser o responsável por fazer o universo chegar ao ponto de entropia máxima: enfim, a morte térmica. Ou talvez não, talvez eu não careça de tanto assim. Acho que me satisfaria até com uma xícara quebrada. Chutaria os cacos pra debaixo do tapete, me esqueceria do fato e não me surpreenderia se me cortassem os pés. Acontece.