Kleber Lima

O GRANDE OBJETO EXTERIOR
a José Neto

I.

Devo contar da minha cisão. 

De certo houve uma cisão. 

A única maneira de não sucumbir é manobrar por essa maldita cisão.

A distância insuperável depositada no meu olhar me pesa e me faz ver melhor. 

Não fico e minha sombra vagueia imiscuída a meu corpo, permitindo ainda me achar feio nos espelhos e em olhos alheios. Rio: uma coceira praguejante como esta, só é possível se livrar esfolando-se toda a pele.

Alguns passos surdos - me afasto. Minha boca semicerra-se. Recolho-me não me cabendo. Atravesso fino. Onde estou é volátil. 

Atiro os filetes de pele pelo chão, tenho o cuidado de que não forme trilhas, antes os amontoo esperando que algum carniceiro dê justo fim. E continuo. Mais distante. 

Força! Eu digo. E me arranco mais e mais. E fica valendo esse momento, como iniciasse prometida minha vida. 

Estou paralelo. Caminho meus pés, beijo meus lábios, solto minhas mãos.

Não se trata de um caso comum, creio eu. Sinto minha alma resvalar pelo conjunto ordinário e prático do mundo. Vivo sobressaltado - um educado bom dia pode guardar, no instante seguinte, a desmesurada violência de uma facada prazerosa, ou mesmo, no meio da rotina do trabalho, com objetivos rigorosamente definidos a atingir, fico a pensar em me virar e sair sem justificativa e para sempre. Coisas como estas vão de juntando, num ritmo incessante.

Fica-me o espanto:

Eu lá fora?

Eu cá dentro?

(Lá se vai!...Lá se vai!...)

Vou-me por dentro deste sonho a mim?

Vejo dois, três ou muitos; quem sabe quantos ainda podem vir? A fonte é imperecível. Percorrem os atalhos que levam até mim a galope e gritam com força desmedida pelos meus arredores. Mantenho-me atenciosamente para com pelo menos dois. Entram em desacordo com terrível facilidade e se demoram em picuinhas insolúveis. No entanto, até as bestas mais desvairadas cessam, e os dois me espreitando quase anulam o litígio entre si, como se a resolução da inimizade fosse justamente me eliminar. Chegam a salivar os lábios me fitando. “Que comece!”, peço intimamente, não me sendo possível maior felicidade, senão, quando findado. 

Para onde estou indo? Sou indiferente. Apenas dobro os braços sobre a mesa e pouso a cabeça sobre as palmas das mãos e nada acontece, nem aqui, nem lá, nem onde estive ou, talvez, estarei. Súbito. A vida desemboca em minhas pupilas desorientadas - imagens sobressaem frêmitas. Os demônios vasculham-me – se minha alma vacila aplicam-me dentadas profundas em busca do meu osso branco.

É necessário me compreender; se é verdade que ainda podem apertar minha mão e sentir quaisquer indícios de que pareço familiar, é ainda mais verdade que me sinto um ponto convergente por onde passam as variedades do mundo; quando se assentam por um instante fitam qualquer escuridão cativante se lançando com teatralidade para significados já mortos. 

Na cama, em posição fetal, ensaio um grandioso gesto extático: 

A recusa é uma flor apontada para o sol. Meu corpo é isto entre batalha e véspera armisticiosa.


II.

Vamos ao meu cotidiano.

Observo-o. De lá, para cá. Extraordinário. Produzindo-se. Maior. Sempre Maior. Um quadro exposto na parede de minhas pupilas, ofuscante. Abobalhado - eu o observo. Meu desejo é retê-lo de uma única vez e por todos os lados. Escapa-me sempre. Resvala para buracos cuja fresta não me cabe as mãos. Fica lá. Zomba-me, creio. Desgraçado! Um único soco e você cairia desacordado. Depois eu observaria sua inação que também me agrediria bastante. Então, uma vez mais, o declararia invencível.

No intervalo das refeições, o seguinte arranjo me vem como canção:

Deixei meu lugar ao sol vazio 
ocupo-me das queixas dos pássaros, 
uns brancos outros azuis, diurnos aqui, noturnos ali, 
revoando-me. 
Donde saíram tantos pássaros doidos assim?

Contagem: um, dois, três...o sinal abre. O motorista arranca. Meu corpo responde lançando-se para adiante, interdito pelo sinuoso corpo de uma moça, de olhos estranhamente estáticos, boca comprimida, e uma franja vermelha destacada do restante escuro do cabelo. Debato-me contra seu corpo, ora indicando um descontrole total de minha firmeza, ora sofrendo um repuxo que se acentua incontrolavelmente na região genital. Logo a moça pede parada e cabisbaixa vai descendo do ônibus. À distância ela me olha e discretamente ri, ri e se distancia; ri e se escurece; a distância impele um impulso, um lançar-se, um gesto desesperado de mergulho ou um escorregão indolente motivado pelas vertigens do imenso abismo que se forma; ela se lança e eu a recolho, nubente, para dentro de minha escuridão.

Estou indo ao trabalho. Na verdade, pode-se facilmente dizer: ele tem um bom trabalho e é impossível que se desfaça dele, já não pode fracassar, superou seu pai e sua mãe, que pouco instruídos, mas esforçados, só o fizeram estudar. E ainda dizem: ele deu certo, está bem de vida; é, sobretudo, bem sucedido. Não podem fazer má ideia alguma de mim. Ele se veste bem, fala bem, é educado ao escutar; presta serviços com qualidade, demonstra interesse e cuidado com tudo o que faz.

Enfim, chego ao meu destino e logo percebo alvoroço.

A sala aonde trabalho está lotada. Os estudantes aglomeram-se. Estalo a língua. Os punhos se fecham. Sem fixar atenção em nada, recolho um livro em cima da mesa. Saio. Acendo um cigarro, fico fumando, mesmo que não aprecie fumar durante o dia. Está quente. Reparo meu rosto na vidraça da porta e percebo o quão facilmente oleoso ele fica em dias assim. Incomoda-me. O fel aumenta. Na verdade, acumula-se. (Quando explodirá?). Retorno à sala. Posso, enfim, me sentar na escrivaninha e colocar o trabalho em dia. Tudo o que preciso, afinal, é me concentrar. As horas passam rápidas, assim. Entretido e anestesiado, o trabalho discorre melhor. Estou tão surdo - minha companheira de trabalho tem que me cutucar com uma caneta nas costas para que eu possa dá alguma atenção a ela - entro em transe novamente e isso parece obedecer a necessidades internas e, sobretudo, imperiosas.

São muitas as pessoas pedindo informação. Olho-os com náuseas. Há dias horrivelmente inteiros assim. Náuseas, náuseas, náuseas. Ah, esses desgraçados!!!. Estou aqui parado ao lado deles e mal sabem que eu estou no décimo andar de um prédio, olhando detidamente para baixo, com um soluço retesado e com uma mancha escura no peito.

Deixo-me lá, por horas. Quando me dou conta, já estou almoçando. 

Lá estou eu. Estou sentado, horário de almoço. Almoço com os demais. A mastigação quase inexiste. O gosto fugaz dos alimentos não assenta sobre a língua. Meus olhos passeiam pelo restaurante, mais precisamente me concentro nos rostos que se amontoam sobre meus olhos. Sempre há a conversa, o ritmo tosco das conversas, as intermitentes gargalhadas, os modos no comer. Estou sentado em uma mesa que pode apenas me caber. Os que me acompanham, não na mesma mesa, mas nas do entorno, se dispersam a me perguntar coisas do dia a dia, coisas que certamente já sabem melhor do que eu, mas que me falando fingem não saber, impulsionados pela inquietude da minha mudez. Quando, enfim, lhes presto a atenção, falo baixo, o que faz, repetidamente, meu interlocutor solicitar que fale mais alto e audível. 

Poderia alertá-lo, com minha voz de ventríloquo, que o que há para ser escutado não possui ‘altura’ e nem chega a ser fala, mas prefiro impor um pouco mais de força à voz e deixar que me ouçam com mais clareza que o necessário. 

- Cumpro coreograficamente todas as minhas exigências exteriores –

Minha sombra acompanha rigorosamente os movimentos do meu corpo, de tal forma, que não havendo dissidência entre ambos, passo despercebido ante qualquer um.

De resto, nenhuma comida salta de minha boca, não passo as mãos gordurosas sobre a camisa, nem aceito cabelos atravessando meu prato. Ergo-me sem alarde, pausadamente, querendo apenas ir, porque, enfim, vim, comi, e já posso ir.

Cumprimento a todos com um rosto amarelo e umas poderosas marcas de expressão atravessando a testa. Quando notam, surpreendentemente, minha face triste e me questionam de forma humana o motivo, apenas lhes ratifico que minha expressão habitual é essa, adicionando também uma noite mal dormida, não havendo muito com o que se preocupar.

Na rua, enfim – é uma saída que busco? 

Geralmente, o som singular dos meus passos, quando do atrito do sapato com a calçada, me desperta uma atenção prazerosa, num crescendo cinematográfico, onde se pode presumir que a intensidade mais alta também coincide com um acontecimento absoluto que não se pode exigir mudança, só uma percepção tardia de que era isso mesmo e não poderia ser outra coisa. 

Também há uma atração feminina nisso: várias mulheres estalando seus pés calçados num ritmo inexato que de forma alguma se traduz em inarmonia. Também é dessa forma que imagino que uma mulher se aproximará de mim, e em vez de beijar-me, pisará meu pé com a sola do tamanco de salto invejavelmente alto; depois, num gesto inenarrável de labilidade, manterá seus lábios perto dos meus, sem, no entanto, mesmo com minha insistência, ser possível beijá-la. 

A certeza de que sou inábil implode em mim. Há uma sensação ruim, uma ansiedade mórbida concentrada no meu estômago: “foi aquela maldita comida”, eu penso.

Meu cotidiano. A vontade de evasão. As imagens.

Tenho tido terremotos mentais. Tenho caído em esgotos e por lá permanecido. Tenho espasmos, febre, dor nas juntas, na cabeça, vermelhidões na testa. Fecho os olhos e cortam-me à cabeça de hora em hora, chicoteiam-me em praça pública, meus ossos são torcidos e golpeados até quebrarem, e isso se repete, até o momento em que é possível inalar os meus ossos misturados tão perfeitamente ao ar.

Súbito, sou lançado para adiante, como um cuspe, negro e catarrento. Depois me debato violentamente contra o nada; rasgo minha camisa porque não suporto seu peso de veste; de minha boca escorre incontidamente saliva; a cabeça flutua a 200 ou 300 pés, as nuvens a trespassam e meus longos cabelos debatem-se contra o azul do céu; a pupila gira pelo buraco do olho como um parafuso de hélice prestes a saltar e apreende tudo que me passa; às vezes, em plena rua, sem maiores impedimentos que transeuntes apressados e ensimesmados, um longo e estreito corredor, de azulejos vertiginosamente quadriculados, ergue-se a partir dos meus pés, chegando a me cobrir o corpo, encurralando meu olhar.

Desta vez sinto o peito expandir; os pulmões salientam-se; são instáveis, sobretudo, quando mais necessito. Deito ao meu lado; observo a fixidez terna do meu olhar; estou sempre descalço, os pés possuem marcas profundas, no entanto, não há nada que indique desconforto nos passos. Estou quieto, como sempre estive; incomunicavelmente sem armistícios. Mas, enfim, quieto. Som surdo de janela se abrindo; vento virulento resfolegando nos meus olhos; hesito, observo. Há, sobretudo, miríades de tentáculos lançados para adiante, ora colhendo e trazendo, ora arrancando e despedaçando, e assim me vêm: no meu colo se amontoam objetos tingidos de Deus. 

As imagens despencam da boca como um excesso de bílis impossível de conter. 

Há um cheiro pestilento de nu. 

Meu corpo contraído como um só músculo enrijecido.

Algo precisa me chacoalhar.

Preciso de um sim febril. Um sim todo de luz. Um sim que vá se tornando mundo. Um sim que se torne único, um sim translúcido de infinito. Um sim que me seja um fio por onde eu possa vir para fora mim, um sim que se derrame nos meus lábios e nunca me deixe sentir sede.

Desculpem-me. Padeço de fatos. Só possuo intromissões fictícias no cotidiano. 


III.

NÃO TERMINO O DIA SEM:

Findar o dia. 
atiro meu corpo para longe -
casca de banana sem mais uso - 
bocejos ancoram em minha boca, 
abortam o efeito-cupim 
customizado pelo dia;

caio desse corpo
mais e mais;
fico vago
passeio por esse buraco elástico
de onde me vêm o mundo
até desavir de tudo
sorvendo
os frutos
desesperações
da impossível espera
que dura na exata medida
em que espremendo minhas tripas
soam as cordas duma cítara;

“Ele?” “Ele quem?” Essa pergunta é feita em meio a muitos risos.

Posso notá-lo como se fosse uma agitação; de início, um incômodo quase imperceptível, mas como se crescesse e pondo-se de pé, logo se percebe quão difícil é acomodá-lo sem forçar demais os limites, sem apontar por fora uma ameaçadora elevação na derme do corpo; de repente, ele começa a me chutar, e como se não bastasse, os chutes são acompanhados de gritos infindáveis. Ataca-me com socos, rasga minha carne com as unhas, lança cotovelo e joelho de forma a derrubar qualquer defesa que eu possa sustentar; às vezes estica-se até meu ouvido, zomba como se fosse um imundo, do qual nenhum respeito fosse concebível, e me diz: “eu saio, e esta demora, nada me fará de mal, a não ser me transformar num monstro muito mais hostil, de violências insaciáveis; qual uma semente, que já a muito se esconde debaixo do chão e cujas raízes se multiplicam para todos os lados da terra, eu cresço por todos os lados em você”. 

Durante a noite não me deixa dormir; não sei como consegue me alarmar com um assovio tão alto que todos os meus nervos tremem ao eco; já deve está velho, o infeliz, pois quando se cansa ouço seu desagradável roncar; ronca como um velho sozinho a quem deixaram por ser muito egoísta e mesquinho; no entanto, exige atenção como uma criança irremediavelmente ciumenta que não suporta um plano secundário; não sei por que ultimamente tem estado quieto como se estivesse a meditar sobre algo; receio que esteja arrumando um estratagema definitivo que me despedace de vez; no entanto, fico em dúvida se já não morreu ou mesmo se desinteressou por completo de mim. Sua ausência agora é mais impertinente que sua presença; será esse seu estratagema final? Será esse o golpe que imediatamente antecede sua aparição? Essa dúvida me corrói como se se inscrevesse a faca em cada pensamento que tenho durante o dia, misturada às entranhas de qualquer consciência que eu venha a construir sobre mim; creio impossível a paz. 

Posso dizer que em certos momentos estou suspenso sobre minhas impressões; tudo o que obtive de meios e instrumentos para viver minha vida parecem destituídos de realidade. Nem a dor chega a me atingir como dor, nem o sofrimento chega a me atingir como sofrimento, nem a alegria é uma alegria, nem o prazer é um prazer: são sombras que se agitam surdamente dentro de mim. Estou suspenso como um balão no ar e minha leveza parece sustentada por uma vacuidade soprada insistentemente pela boca da descrença; nada a sério, nada!

Paradoxalmente, saio à rua; o sol bate resplandecente em meu rosto; deixo a vida vir a mim por todos os canais de sentidos; mas há uma distância. O que quero dizer com isso? Que dentro de mim há um espaço que cresce vertiginosamente, que se construiu alheio a diâmetro e comprimento, que me permite acomodar o mundo e levá-lo para casa, para algum fim doméstico qualquer, ou atirá-lo, por meio de improvisadas alças, como um monturo num lixão universal.

E então, olho e há silêncio. Um silêncio contíguo à porta da minha imaginação que por lá deve dá por uma enigmática arquitetura. Nada lá se abre facilmente. As frestas, quando existem, são atravessadas arqueando todos os ossos do corpo; às vezes, os quebro, tal é a necessidade de trespassar para outro lado, respirar um pouco. Fico escoriado e com alguma costela fora do lugar; adiante, exangue e beribéri, nascem-me incríveis olhos azuis que mais se desbotam quanto mais minha íris lateja de visões mundanas e abundantemente o mundo se torna existível; é como um relâmpago despachado ao contrário, da terra para o céu: só se torna possível na impossibilidade de o ser. Mas lá está ele. Diante de nós. E nossa próxima refeição já está pronta, e sempre estamos famintos, de uma fome que administra outras fomes. 


IV.

Esse algo separado que se desloca se interpõe ante mim. Esses gestos atravessados que atropelam os meus; esses olhares desviados, distantes que nada veem; essas falas incontínuas e incoerentes que se debatem pela minha boca; essas corridas que acontecem quando eu estou simplesmente parado; essa falta de ar ao acordar; essa sede segundos depois de beber, essa vontade de esticar mais o braço quando a caneta, depois de caída, já está recolhida entre os dedos; essa voz que não destroça vidraças ao lançar um grito injustificado; essa reação que nunca está a altura da ação que a causou; esse imenso desconforto mesmo quando verificada que toda a agenda de compromissos já fora atendida, esse gozo profundo que não dissolve minha carne atestando a impossível união com o outro; essa sensação de alguém batendo fortemente à porta, altas horas da noite, quando o que predomina é um simples silêncio de todos estarem a dormir. 

Esses pequenos sobressaltos durante a noite intumescem a insônia. Vejo-me crescer bastante nesses momentos insones. São centímetros tortos e inacomodáveis, de tal modo, que durante o dia mal posso me mexer, sem, no entanto, derrubar um ou outro móvel. Só posso concluir que aqui é pequeno demais, e é preciso andar despedaçado por aí para se caber nas coisas, ou apertar demais a gola, ou apertar demais o saco, ou calçar sapatos apertados demais, encravando as unhas, só para sentir aquela dorzinha fraternal de se reconhecer “humano”. 

Com a cabeça pendida, recolho no ar os pedaços rotos d’alguma saída. Um silêncio aracnídeo tece vagarosamente uma espiral, donde soa uma vitrola arquetípica deslizando sua agulha por sonoridades aleatórias. Estupefato, meu corpo estala por conta dessa sonoridade estranha. Admiro as sacudidelas do meu corpo, desobrigado da música, do ritmo e dos pés. Aproveito toda a liberdade dos meus movimentos, harmonizo gestos descompassados, cadências imprevisíveis; joelhos e cotovelos se chocam; arrasto-me pelo chão, à suavidade das pernas eu mexo epileticamente os braços, e consigo um movimento singular para cada membro do corpo, a boca....os olhos...os ouvidos....os cabelos....a genitália...o estômago...eu me dançava. A imensidão do pátio, enfim, conciliada com minha imobilidade. Eis o sonho.

Só a cabeça vagueia nesse espaço rarefeito. O corpo ficou imóvel no térreo, solicitando um elevador quebrado. 

Sem nada mais a me chamar a atenção, aquieto. Subitamente o espaço se alastra a cavalgadas rápidas. Em todas as direções é possível se atirar. Há um pouco de ar, mesmo que intermitente, e as pupilas tremulam cativadas por brilhos transitórios. 


V.

Minha posição é esta: 

- Não estou escrevendo.

Estou erguendo um corpo imenso, coberto por chamas; estou friccionando frestas vermelhas nas testas das pessoas; estou deslocando o vento por trás da pupila; estou coligindo monstros em berçários cotidianos; estou escorregando a língua por entre gotas azedas de orvalho; estou aliciando um púbis celúreo; estou anotando num caderno velho a lábil trajetória das janelas que se abrem durante as noites insones; estou marcando objetos com pedaços de pele contingente da multidão; estou desembaraçando silêncios enovelados em plena boca de cães; estou apedrejando vidraças embaçadas atreladas ao olhar; estou rente aos lapsos irrefreáveis desembocados do desconforto e da inaptidão; estou costurando uma mão à outra, uma cabeça à outra, uma cor à outra – retalho ambulante, assente o mundo.

De fora, quem me vê, pode pobremente me considerar tendencioso - apontar um lugar e me instalar. Não há. Nunca estive realmente em algum lugar, interesse não há. Sempre sobra um membro ou um tronco a mais nas roupas que visto; há olhos demais espalhados pelo meu corpo, e mãos com setenta braços em cada dedo, bocas emudecidas por pedras, suspiros insistentes, febres frias, passos que sobressaem para todos os lados. 

Situação insustentável. 

Não. Estou dentro e digo: 

Dentro é como o balouçar desfraldado de vazios. Há a necessidade de se dar pontos exatos, atados, irremovíveis. Chega-se com isso a uma costura. Depois, e de volta, certo de que não há como desfazer mais tal costura, repete-se o mesmo processo, partindo do último ponto findado, dessa vez, com a mesma exatidão vai-se contrariamente ao início da costura anterior. Estão diametralmente opostas, inconciliáveis, porém, coexistem. Em muita confusão atam os terríveis vazios da alma humana – bruxuleiam essa colcha oca de vida! 

Agora está claro. Um lance sumário. Inexorável. Desenhei o vago dentro de mim. Tracei as inconsistentes linhas do escuro. Descrevi o silêncio como quem mede sua própria envergadura. Os instantes são esses corridos e cavalgados, o tempo regressivo sem fim necessitando ponteiros inúteis para dizer - não diz.

Por enquanto, me contento com esses gestos não notados.


VI.

Agora só me toco com bisturi e não coagulo. 

Um olho no bilhar e outro n’algum buraco iminente na têmpora da página.

Foto de Kyle Thompson.