Joelmir Zanette

NA MARGEM, O ABISMO

     Essa estória começa quando cheguei à conclusão que havia me tornado dispensável ao mundo e a minha própria existência. Sei que muitos dirão que estou louco ou doente, e essa afirmação não é todavia fantasiosa, porém, refuto esse diagnóstico óbvio e defendo o ponto de vista de que um homem tem o direito de saber o dia que deixa de ser útil a seus próprios propósitos e princípios. Quando entendemos que para o melhor aproveitamento do tempo, precisamos de planejamento e acima de tudo, de esperança (ou fé, como queira); estamos apertando o REC na câmera escondida em nossa consciência, nossa memória arquiva todas nossas ações, vitórias, derrotas, nossos medos; erros e acertos ficam gravados em algum lugar, que não sabemos certo onde, mas estão ali, para serem editados sempre e dar sentido ao nosso próximo passo, a nossa próxima escolha, o que desejamos ao nosso futuro. Já é hora de colocar as coisas em ordem, deixar tudo organizado e partir. Não vejo mais futuro aqui, não acredito mais na boa vontade nem na falsa ilusão de salvação, estamos todos condenados e nada mudará isso. Voltaire dizia que “filosofar é aprender a morrer” e eu que venho trabalhado isso em mim, sei muito bem que morrer nunca vai ser uma boa escolha, por quê? Porque ninguém sabe o que vem depois; a vida é sempre uma historia inacabada. Estar só talvez seja como estar morto. Já fantasiei a morte como uma solidão eterna, trancado em uma prisão onde vai recordar tudo que fez em vida, onde terá tempo para rever todos os seus dias felizes e tristes, uma eternidade para contemplar seus erros. Hermann Hesse, no Lobo da Estepe diz “O maravilhoso desejo fora realizado e já não era possível voltar atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e nostalgia, disposto à fraternidade e vida social. Tinham-no agora deixado só. Não que fosse motivo de ódio de repugnância. Pelo contrario, tinha muitos amigos... recebia convites, presentes, cartas gentis, mas ninguém vinha até ele, ninguém estava disposto nem era capaz de compartilhar de sua vida.” Sentir-se só vai além de estar só, é comum vivermos “como unidade em comunidade”. A realidade é que somos unidade, complexa e de certa forma incapaz de prosperar, pois nem tudo depende de nós. Partir é sempre uma boa solução, ainda que sem rumo, ainda que sem destino, partir sempre me soou bem; talvez seja por minha ausência de partidas, vivo aqui há muito tempo, sou como uma árvore cheia de raízes, que observa a realidade complacente e busca sabedoria sob o mesmo céu. Não sei se isso foi uma escolha, acredito que seja mais uma conseqüência das escolhas nem sempre bem acertadas. Enquanto estamos escrevendo a nossa história podemos consertar as coisas, desde que encontremos onde está o erro. A vida, todavia não nos possibilita tais constatações. Certo dia ouvi de um velho que seu maior desejo era ter lutado na guerra. Foi proibido por ter uma perna levemente mais curta que a outra, sequela de um acidente em treinamento. A guerra acabou e lhe incumbiram de entregar cartas de pesares as famílias dos pracinhas mortos. A cada carta que entregava, agradecia pela perna manca, mas invejava aquele soldado abatido em combate, que pode honrar a bandeira de seu país. De certa forma, para aquele velho, a morte em combate era mais digna do que a vida manca, foi aí que pensei, e eu? A quem vou culpar? Meu pai também me falou algo que me marcou muito, atribuiu ao meu nascimento seu fracasso. Não levei ao pé da letra, mas entendi que sua frustração era me ver frustrado, embora eu nunca houvesse demonstrado tal sentimento. Ser o motivo do fracasso de seu pai é como ser o escudeiro do rei, e por desatenção deixar que uma flecha o acerte bem no peito. Só sabe o que é isso quem foi goleiro numa partida de futebol na aula de educação física do primário. Sendo você o pior jogador em campo, o ultimo a ser escolhido e escalado deliberadamente para ficar no gol; (pelo excesso de confiança de seu time na vitória) deixando a maior responsabilidade da partida em suas mãos. Quando os planos não saem como o esperado, é você que sofre as consequências, excluído, sozinho e com o amargo da derrota. Não sou perfeito, longe disso, nunca tive a pretensão de parecer como tal, mas sou adepto do perfeito aperfeiçoamento. Acredito que a vida seja de alguma forma, o perfeito direito e o obrigatório dever de se autoaperfeiçoar. Sabendo de minhas fraquezas, e livre para minhas escolhas, ao decorrer dos anos deixei o futebol de lado e me iniciei em outras artes. Andei muito de bicicleta, calculo que percorri o equivalente a duas voltas ao mundo só dentro do meu bairro. Mas enfim cresci, e agora minhas escolhas não se resumem ao canal de TV e a lição de casa. Leite ou puro? Açúcar ou adoçante? Loiras ou morenas? Cabelo crespo ou liso? Investir em imóveis ou ações? Guardar o dinheiro ou gastar tudo? Ser um homem ou um menino? Nada pode substituir o abismo pessoal. Nada é maior do que a dúvida que pulsa na cabeça. Todo tempo, todo minuto, todo segundo. Desde que o REC foi acionado, são as escolhas que determinam o tamanho do abismo, e é você que vai me ajudar a pegar impulso.

Foto de Martin Stranka.