J. P. Marcowicz

SANGUE BRANCO OU TINHA SIDO UMA BOA NOITE DE SONO

O som desafinado da guitarra do Kurt Cobain saindo pelo alto falante do celular me acordou. Tinha sido uma boa noite de sono. Sonhei com os pasteis de carne e ovo que minha tia fazia quando eu era criança. No sonho mulheres ficavam para fora da casa com os peitos à mostra. Elas sorriam para mim enquanto eu comia os pasteis tomando um litro de tubaína. Tinha sido uma boa noite de sono. Fazia dois dias que eu não dormia e meu corpo precisava de descanso. Eu e minha juventude tardia tínhamos passado a madrugada anterior cheirando umas carreirinhas num banheiro sujo de uma festa cheia de gente bacana. Talvez eu tenha passado do limite, mas foi por uma boa causa. O dono da boca virou pastor. Ele precisa vender o que tem guardado para comprar o equipamento de som da igreja. Apenas aproveitei a oferta. Além do mais nunca fui uma pessoa bacana. Sendo assim, um nariz entupido de pó faz com que as coisas fiquem mais fáceis. Um nariz entupido de pó faz com que eu não tenha que andar apenas nos lugares mais escuros ou tenha que me esconder atrás de Ray-ban comprado no camelo. Um nariz entupido de pó faz com que eu possa olha-la como se aquela surra que lhe dei nas bodas de ouro de seus avôs não tivesse existido. Agora ela tem um novo corte de cabelo e um lobo tatuado por cima da frase do Dylan Thomas que leu num livro que lhe emprestei. Não é um pedaço de tinta sobre a pele que vai conseguir arrancar das vísceras um caso mal resolvido. Mas o mundo e cheio disso. Por isso há hospícios, bares que fecham só quando o dia nasce e livros amarelados mofando em prateleiras de sebo. Há sempre um deus sussurrando um heavy metal nos ouvidos de alguém. Tinha sido uma boa noite de sono. Eu me sentia como um Peter Pan cheirando uma carreira na bunda da Sininho. Mas aqui o Peter Pan é um jovem a beira de uma overdose e a Sininho uma gorda embriagada suando pelo bigode. Uma juventude eterna na Terra do Nunca. É como se as tardes na praça fumando maconha e tomando conhaque ainda existissem e pôsteres de Rock Stars continuassem grudados na minha parede. Tinha sido uma boa noite de sono, mas sempre há o outro dia. Observo a paisagem pela janela enquanto tomo café e fumo um cigarro. O tempo vai se fechando. A rua está deserta e pingos de chuva caem sobre o asfalto. O céu cinzento anuncia a tempestade. Por isso tem que saber onde pisa. O dia seguinte não vem em forma de abraço dos ursinhos carinhosos. O outro dia é como uma mãe encaixotando as coisas do filho único que morreu de câncer. O outro dia é um caminhão cegonha batendo num gol mil parado na beira da estrada. O café está amargo. Tinha sido uma boa noite de sono.

Foto autor desconhecido.