J. P. Marcowicz

RODOVIÁRIAS SÃO FILIAIS DO PURGATÓRIO

O barulho da chuva acalmava. Meus cigarros já tinham acabado e com os últimos trocados comprei um copo de café preto. Os corpos amorfos transitavam de um lado para o outro como se não tivessem destino. Um mendigo implorava por alguma esmola enquanto distribuía a benção divina para quem o ajudava. Rodoviárias são filiais do purgatório. Eu conseguia sentir o peso dos pecados sendo espiados por entre os seus bancos sujos e seus banheiros cheirando merda. Talvez por isso que eu já tinha fumado uma carteira de cigarros desde a hora que cheguei.

‘’Feio o tempo hoje né? Tão dizendo que vai chover por mais uma semana.’’, dissera um velho senhor que acabara de sentar do meu lado.

‘’Prefiro assim.’’, dissera eu secamente sem olhar para ele.

‘’Você esta indo para onde? Não está com uma cara muito boa, algum problema?’’, perguntara o velho como quem quisesse puxar assunto.

Respondi com o mais absoluto silêncio. Eu não tenho mais paciência para aguentar velho carente enchendo o saco. Para evitar mais perguntas peguei na mala um livro do Raymond Carver que levei para ler durante a viagem e antes que o velho pudesse fazer outra pergunta enfiei a cara no livro. A história falava sobre um homem que estava bebendo num bar tentando descolar uma trepada. Mas com todas as coisas que se passavam pela minha cabeça nem uma história sobre bebedeiras e trepadas conseguiria me entreter. Rapidamente perdi o foco e desconcentrei-me da história. A chuva ficava cada vez mais forte e meus pensamentos cada vez mais distantes. Eles foram parar em antigas lembranças sobre o meu atual destino. Memórias que reviravam meu estômago e jogavam-me ao fundo do poço.

Talvez eu nunca esqueça daquela semana que passamos juntos nas férias de verão, onde roubamos um pouco de dinheiro da sua mãe e fomos até o mercadinho comprar cigarros para impressionar suas primas do interior. Nosso pulmão era virginal e a cada tragada daquele cigarro paraguaio perdíamos um ano de vida. Mas elas impressionadas com os rapazes ‘’da cidade’’ nos deixaram pegar em seus peitos e em suas vaginas fazendo de conta que nada estava acontecendo. Talvez eu nunca esqueça de quando seu pai bêbado meteu umas porradas em sua mãe. Apenas segurávamos o choro enquanto ouvíamos gritos e barulho de louça quebrada vindos cozinha. Tanto eu como ele já éramos acostumados com aquilo, tínhamos a manha de lidar com aquele tipo de situação. Foi lá que muitos anos depois queimamos nossos primeiros baseados. Ouvíamos todos os discos dos Beatles, falávamos todas as merdas possíveis e comíamos toda a comida durante as nossas sessões de fumaça no quintal da casa. Também foi lá que tive meu primeiro porre, vomitei em cima de uma menina no meio de uma festa que demos quando seus pais foram viajar. Eles chegaram de surpresa, a menina tomava banho e eu vomitava no tapete turco. Lá foi minha segunda casa e ele o irmão que não tive.

Esperando o ônibus no banco da rodoviária tudo isso vinha em minha mente. O abismo ficava cada vez mais profundo, a solidão tomava conta de mim. Ele era o comparsa de todos os crimes. Dois lobos fora da matilha que uivam para a lua cheia na fissura de descolar uma bucha de cocaína. Dois cúmplices que levam o segredo para o túmulo. Kerouac e Neal Cassady ‘’on the road’’. O desalento daquela rodoviária me faz lembrar que nunca mais iríamos ter uma conversa como aquelas que tínhamos bêbados, onde esperávamos o sol nascer apenas para sentir a brisa gelada e acalentadora da manha. Nunca mais poderíamos ouvir um cd de blues após tomarmos um chute no rabo e no outro dia sair para tentar foder qualquer rabo que aparecesse na nossa frente. Nunca mais ele me ligaria de madrugada chorando por causa de uma puta que ele julgava ser a mulher de sua vida. Dessa vez não jogaríamos sinuca no puteiro em frente a sua casa e nem iríamos dividir uma garrafa de Whisky falsificado.

‘’Passageiros do ônibus 10, embarque no portal H em 15 minutos.’’, dissera a voz pelo alto falante.

Respirei fundo e preguiçosamente levantei da cadeira, o velho não estava mais do meu lado e a chuva ainda não dava sinal de trégua. Um mendigo chegou até mim e contou uma comovente história sobre como é dura a vida na cidade grande. Se eu tivesse algum trocado eu até daria para ele, mas tudo que eu tinha era uma garrafa de conhaque e algumas roupas na mala. Dou uma desculpa qualquer e dirijo-me para o portão de embarque. No caminho pude perceber toda a tristeza e desolação que são as rodoviárias, amontoados de gente querendo chegar a algum lugar quando na verdade nosso destino é sempre incerto. Quanto mais perto do embarque eu estava mais angustiado eu ficava. Talvez o conhaque pudesse aliviar a dor, mas naquele momento deixei aquele eterno blues tocando bem alto em minha alma enquanto esperava para entrar no ônibus. Eu sabia que daqui mais ou menos duas horas, quando eu estivesse lá e o abismo fosse tão grande que talvez até uma lágrima sai-se do meu olho, eu poderia secar a garrafa num só golpe.

Foto de Edward Chan.