Kleber Lima

O CICLO DOS DEMÔNIOS

“I believe in God, and I certainly believe in the Devil. 
There’s certainly a devil, and he knows my name.”
(Daniel Johnston)

A Nathanrildo Costa e Thiago Rego

Dos demônios


Encontrava-me perdido. Vagueando...

“Ponha-se de pé!, vamos, não será assim tão fácil”, ouvi longíqua, mas com determinada força, esta intransigente fala. 

Não havia nada ali. Eu estava tão exausto, com um olhar vago. Meus joelhos redobravam com insistência. 

Girando a cabeça para onde escutei a fala, avistei com dificuldade uma imensa mesa de reuniões. Depois de caminhar em sua direção, notei que estava ocupada por cinco cavalheiros, todos vestidos de preto e notoriamente aristocráticos. Cada um portava um caderno aonde sublinhavam sem parar suas anotações.

Creio que desmaiei em seguida.

Mais uma vez, com estridência, escutei: 

“Ponha-se de pé e venha até aqui!”.

Os pés não obedeciam com facilidade, mas me dirigi como um zumbi até a voz. Meus olhos ainda não eram capazes de fitar quem me chamava. 

Com passos sôfregos e nu, eu balançava sem parar naquele vento forte.

Avistei a imensa mesa onde cinco cavalheiros vultosos, incrivelmente absortos em suas anotações, pareciam indiferentes a minha aproximação. 

Eis que um deles, erguendo subitamente a cabeça, disse: “vamos, apresse-se! não temos o dia todo”. 

Havia uma cadeira vazia, e enquanto pensava o que poderia ser toda aquela estranha armação, um dos cavalheiros, já bastante irritado, disse: “sente-se, não vê a cadeira vazia?”. 

“Sim”, ele disse. E sentei ainda muito abalado. 

“Sabes por que estar aqui?” Perguntou um dos cavalheiros, “não”, eu disse. 

“Você nos deve explicações, poderia justificar-se?” perguntou o cavalheiro.

“Sobre o quê?” indaguei. “Apenas precisamos de justificativas, posto que aqui chegou, não se precisa de mais nada além de justificativas”, disse o cavalheiro. 

“Os cadernos possuem infinitas páginas e anotaremos tudo o que você nos disser, mas devo lhe dizer que nosso tempo é escasso e corre rápido, caso não tome conta, poderá se prejudicar ainda mais, fazemos esse alerta, pois se trata de uma conversa franca”. 

Houve um silêncio demorado, muito muito longo, embora se possa dizer que pouco percebido, a não ser quando um dos cavalheiros, de forma insistente, erguia a cabeça e com um olhar vazio estalava os dedos de tal forma que a tonalidade dos estalos deixava notar a ordem dos dedos estalados. 

Então, sustentei-me o mais que podia sobre minhas pernas e caminhei tortuoso até o cavalheiro, que me parecia mais atencioso, e disse: “veja bem, não há nada o que relatar, nada, se insistem, perco-me facilmente em falas equívocas, desfeitas logo que me questionarem no momento seguinte”. 

“É fato”, disse o cavalheiro, “disso nós sabemos; não se justifique por palavras, queremos escutar seu silêncio, e se não notou, os outros cavalheiros te perscrutam concentradamente no mesmo instante em que, sem olhar para o caderno, anotam sem parar”.

Então o cavalheiro afastou-se, mas sem me perder de vista. Saltava de pé em pé, contendo um riso sarcástico espalhado por todo seu rosto.

Todos me perscrutavam. Estavam detidos em anotações que não podiam deixar escapar qualquer por menor. De certo devassavam por debaixo dos monturos mais obscuros, das quinquilharias mais ordinárias, atirando longe os arames podres incrustrados em verdades inconfessáveis, vasculhando cada falso abismo, destruindo cada imagem inconsistente, farejando os mínimos e ínfimos gestos que nunca chegarão a ser, vontades procrastinadas, sonhos endurecidos que fizeram mais hirta as paredes da realidade, desfiando o véu de todas as desencontradas ilusões, fio a fio, noite pós noite, e chegando, quem sabe, a um fiapo insustentável, algo que poderia ser liquidado num sopro apenas.

Passado um tempo, eu tremia; um a um os cavalheiros se aproximaram...



Demônio dos outros


Um deles chegou ainda mais perto; os outros continuavam a anotar em seus cadernos, determinados. 

Era um ser de muitas caras. Reproduzia um rosto diferente a cada segundo. Um amontoado deles, vez em quando. 

“Quem é você?” perguntou a mim, com uma voz que continha todas as vozes do mundo. 

“Sou um suicida”, respondi. 

“Estás mais vivo agora”, ele disse. “Uma interrupção abrupta, sobre um suposto trajeto seguro, é admirável”, complementou. 

“Olhe para todos os lados”, continuou o cavalheiro, “aqui não há ninguém além de nós e você.”

“O que isso quer dizer?” perguntei.

Mas por um instante, em súbita agitação, ele rodopiou como se o chão rachasse debaixo dos seus pés, e como se fosse um arranjo poliédrico imprevisível, fragmentou-se em milhões de faces indistintas, todas pálidas, iradas e febris; retalhou seu corpo com os mais variados punhais e bifurcou a língua em inumeráveis pontas de garfo dobradas à ponta. 

Depois arfando, em meio a gemidos, atingido por fortes náuseas, pareceu, com muito esforço, e pouco a pouco, retomar a pose altiva e disse-me: 

- “Quem dera pudéssemos nos livrar das influências mais impregnantes como nos livramos de certas sujeiras fáceis chacoalhando o corpo”. 

Encostando mais e mais sua face intoleravelmente cambiante em minha fronte, eu acompanhava estupefato sua histérica mutabilidade.

Um poderoso mal estar apoderou-se de mim, concentrando em minha língua uma amargura que me fez vomitar.

Então o cavalheiro me olhou ainda mais atentamente, aproximou-se do meu ouvido, e limpando o resto de vômito da minha boca, disse: 

- “Todo o problema reside em assentar-se, qualquer dia desses, e já está solenemente vestido, entrando pelas portas encarameladas do mundo e se confortando com os desertos de areias acolchoadas preparadas intencionalmente para que o som dos teus gritos mais agonizantes soe curto e abafado e, logo depois de certo suspiro profundo, você retorne quieto e cada vez mais discreto”.

Afastou-se saltando como uma criança enérgica. Dispersando os braços pelos ares e tagarelando uma canção idiota. Parou distante e novamente falou: 

- “Aprender a viver assim, observando esses invisíveis micróbios inquietos vicejando dentro de si e saltando camuflados, vez ou outra, por dentro de uma palavra ou de um aparente gesto involuntário como olhar ou sorrir;” 

Rio, rio muito e perguntou:

- “Você se livrou deles?” Você se livrou deles?” Você se livrou deles?”...e antes de desaparecer na densa névoa que descia pela planície, perguntou ao homem, com uma desconfortável voz infantil:

-“Um suicida, hein?” 


Demônio de minha mãe


Novamente algo chacoalhou-me. É na altura da barriga. Coça muito. Arranho com força meu abdômen. Com bastante força me tenho ferido. O incômodo aumenta ainda mais. Não adianta. Nada adianta. A coceira galopa pela cintura, arde, torna frígida a carne da barriga. 

Avoluma-se um nódulo por cima do meu umbigo. De dentro é possível discernir mãos e pés se agitando, depois uma cabeça forçando para fora do nódulo como se estivesse sufocando lá dentro. Fico histérico. 

Minha barriga abre ao meio. A cabeça escancara os dentes, cospe algo para fora, e aparentemente confortável, olha para mim e diz:

- “Carrega-me como um fardo e eu tanto que te amo!”

-“tens o rosto de minha mãe”, eu disse.

- “Sou tua cria, como vês”, me diz.

Por um longo tempo nos fitamos. A esse longo transe juntava-se um singelo gesto de carinho. A cabeça com os olhos, eu com as mãos. Debandava ternamente para o lado seu tufo de cabelos ralos. 

Devo ter feito isso algumas inúmeras vezes. 

Possível dizer que somente um ar sujo, soprado entre as inquietações mais ordinárias, obscuras, incalculavelmente interditas, e que agora se libertam de inquebrantáveis correntes como cachorros vorazes ensandecidos em todas as direções, é que poderia, enfim, dar cabo de uma cena tão bela. 

Mas como um lento apoderar-se, primeiro sorrateiramente dilacerando cada nervo dos olhos, hematomando a pupila, inturgescendo as pálpebras, enchendo de traços abjetos meu rosto encovado com cascalho e ferrugem; eu tinha corrompido os limites da minha boca, me transformando, pouco a pouco, em um transtornado. 

Da nuca minhas mãos deslizaram para o sexo. Acariciando fortemente a genitália, atritando contra o excesso de pelos a raiva das mãos; endurecia rapidamente o membro, com ódio prazeroso. Iniciei uma poderosa masturbação, estrangulando meu ereto membro com todos os dez dedos, deixando trespassar um prazer que tremia todo meu corpo, que o rasgava, que o ardia, que o expunha, nada mais, nada menos que uma vultosa víscera da infâmia.

Aquilo tudo vinha de dentro de mim.

Comecei a me golpear fortemente, no estômago, empreendendo golpes cheios de desespero, enquanto, sobre incontidos risos, a cabeça do cavalheiro parecia acolchoar-se ainda mais em um êxtase contido em cada lágrima. A dor esculpia seu sorriso - estúpido, forte, corado e sustentado por lindos surtos trêmulos. 

Queria expulsar tudo aquilo. 

Os golpes guilhotinados das mãos, os soluços, o corpo torto, precipitado, me saindo, esvoaçado, quebrado, jorrando aquele sangue todo, borbulhando agressivamente pelo meu corpo, reagindo à extrapolação de fluir ainda que fora de veias e artérias. 

- “Sai” “Sai” “Sai”, gritei. E batia, batia, batia, tentando me livrar.

A cabeça, num movimento leviano, apenas disse:

- “ENFIM, não se livra assim de uma coisa dessas”, e recolheu-se para dentro de mim. 

Seguiu-se um silêncio pacífico e fiquei aparentemente calmo por um momento, acariciando minha barriga lisa e fechada, como se nada tivesse acontecido - um sonho? Depois despenquei, abatido e imóvel, em posição fetal. 

Eu era um feto.


Demônio da palavra


- VOCÊ ESTÁ MAL, BEM MAL!, disse um dos cavalheiros. 

No chão, eu murmurava.

O cavalheiro chegou mais perto; seus gestos eram lentos, de execução quase etérea, e isso fazia com que me sentisse cada vez mais tomado por uma energia que se me injetava, que atravessava minha dor e aliciava a violência de uma solidão singular. 

Constantemente o cavalheiro me abraçava, estabelecendo uma unidade anômala; foi pelo meio daquela densa revoada de silhuetas informes, circundando insistentemente a nós dois, que me vi unido a algo.

- “Abrace-me”, disse o cavalheiro, “abrace-me” disse extrapolando os limites de qualquer afeto. 

Sua voz ressoava pelo meu corpo indefeso; nesse momento tinha toda minha vitalidade subtraída ao sentido da audição, mas a verdadeira comunicação parecia estabelecida por uma total ausência de fala, desvanecida talvez por essas reverberações infinitas e comprometidas com algumas enormidades. 

Ausentar-me de minha humanidade era necessário, pois o que me arrastava não poderia fazer par com nada sem se perder, não poderia se manter intacto sem se dissimular.

Eu sabia agora qual era o intermitente alimento que me manteve forte por toda essa vida.

Sei a persistência. 

A necessidade de continuar coincide com esses intermináveis ranhos de portas que durante toda minha vida me impediram de dormir, me sufocaram, nunca me permitiram me encaixar em nenhuma comunidade real, existiram como uma insígnia alardeando todos meus atos e pensamentos, me fazendo abrir passagens fugidias a favor da luz.

Neste momento o abraço do cavalheiro me envolvia cada vez mais. Íamos, pouco a pouco, nos fundindo e sentia que todos meus ossos eram lenta e irreversivelmente substituídos por uma melodia que me deixava íngreme, ali naquele chão, ainda assim íngreme, incomparavelmente íngreme.

Então, depois de alguns pequenos espasmos, o cavalheiro disse: 

- Não, não fale nada, posso te livrar de toda essa dor, mas terei que arrancar todos os seus ossos, a escolha é sua, disse o cavalheiro. 

Subitamente fechei os olhos:

- A sensação de uma imensa mão e depois fortes dedos me enlaçam, os próprios pelos eriçados penetram facilmente qualquer parte do meu corpo, não faço esforço algum, estou femininamente inapto para a defesa, é uma tentação na verdade. O som dos ossos se quebrando demoradamente, a estridência uníssona dos estalos, a carne se rasgando, a mais bela sinfonia da dissolução...


Demônio do si


Em noites insones encontro pedaços do meu corpo nos pontos mais extremos do mundo.

Mas eis que já é dia, o sol, esta estrela que um dia se extinguirá, hoje é incrível; sou este que se abriu à vida, que se enfia nela, que evacua ela, que foge, que ri e que, principalmente, sangra.

Estou sangrando. As feridas são enormes. Há uma cria de olhos nelas. 

Como estas feridas, eu vivo crescendo na solidão.

- Vejam só! Ontem mesmo, ao tentar entrar em minha casa, choquei violentamente a cabeça contra os limites superiores da porta. 

É difícil manter, por muito tempo, a mesma estatura e envergadura. Não-caber é o instante que perdura quando estamos sozinhos.

- Daí nascem os incômodos.

- Ele, que contém o mundo, jamais poderia conter a si mesmo. 

Eu tenho acreditado que são justamente estes os momentos de grande violência. Desse trampolim improvisado pelos limites da incompreensão é que este homem, agora sem vísceras, se torna precipite. 

Estou bebendo com os amigos, estou em casa com a família ou estou deitado debaixo de uma árvore, mas sinto, como se fossem pequenos atritos por dentro da pele forçando-forçando, a impossibilidade de um pacto que me encaixe nestes limites. 

Uma palavra ainda se engolfa em minha garganta, agonizo; o mais deprimente é que no esforço de cuspi-la, na expectativa de me salvar, epiletizo-me no amor, ou nisso ou naquilo, sobressaio-me por um triz.

Tenho ainda dessas divagações.

Devo rir bastante de tudo.

É um sorriso? Este homem ainda ri? É um sorriso mudo, um sorriso concebido através de seus olhos, aberto em sua face pela mesma lógica do desabrochar de uma flor, pela mesma lógica de um corte cesariano, tal qual um desenho inapagável tomando sua face; Que estrondoso e desproporcional!!! O torna desconhecido; não há dentes à mostra, mas sua gargalhada ainda assim é bonita, reverbera como o mar, é contemplável como o céu, silenciosa como a mais densa noite, tem muito, inesgotável; este riso lembra a inconsciência de um beijo profundo dado por amantes distantes ou o êxtase inacessível de um indivíduo imerso na multidão; mais um pouco o riso salta e rodopia pelo mundo, e todos, espantados, poderiam se perguntar: “Quem ri tão alto assim?”, então ouviriam, da mesma forma que já estava escrito há tempos, dos quatros cantos do céu: “só um homem atravessado pelo desespero sorriria assim”. Esse sorriso, tenho que lhes avisar - ele ainda não começou, mas o homem que o dará está vivo e permanecerá vivo até tal movimento jocoso lhe for permitido.


Demônio D.


As anotações esvoaçaram distantes. Os cavalheiros, atingidos pelo estardalhaço incomum daquele sorriso, protegiam seus ouvidos.

Não é possível saber exatamente o que foi anotado. É fato que existiram equívocos, pois assumiram desde o início que só se atentariam a isso que denominam silêncio. Seria preciso encostar os ouvidos nas páginas em branco e sentir o chão por debaixo dos pés ruir.

Decerto, não anotaram os estrondos, nem os labirintos de algazarra, nem os gritos que se acumularam dentro da garganta, isso sim, tutano cervical dos silêncios mais íngremes, aonde as perguntas “Encontrar o quê? Procurar o quê?” são pronunciadas em carne viva.

Não se pode prever aonde um homem assim pode chegar, mantendo-se distante, mantendo-se abandonado; o imensurável espaço que se dobra feminino sobre seu ombro lhe dar a certeza de não está mais só neste mundo.

- Ele agora tem um rosto para tocar, um rosto silencioso. 

Esse tato sutil me era permitido como se permite a um condenado uma última palavra.

- A vida rasgada de Vida, o silêncio rasgado de Silêncio, a luz rasgada de Luz.-

Fui inegavelmente amado [lembro bem dela, sustentando suas pernas abertas, permitindo que o buraco não se fechasse e me pedindo, com olhos exteriores por dentro de tudo, que eu me jogue], isso me manteve um pouco mais, isso me permitiu me instalar o mais fundo do que quer que seja.

Foto: autor desconhecido.