Kleber Felix

SURPRESA

     Era aniversário dela. Nunca liguei pra essas coisas, mas ela gostava. E eu, bem, eu amava aquela garota. Então bolei um plano infalível pra pregar-lhe uma puta surpresa. A gente havia se mudado pra essa cidade há pouco tempo, então não conhecíamos ninguém. Tanto melhor, não tive muito trabalho tentando convencer nem subornar ninguém, apenas segui fingindo dormir quando ela acordou pra ir trabalhar fazendo mais barulho que o normal, solfejando aquela do Raul que dá bom dia ao sol. Acompanhei atento cada ruído no banheiro, imaginando ela escovando os dentes e encarando os próprios olhos maravilhosos sonados no espelho. Sua calcinha escorregando por suas pernas de atleta juvenil, a água quente tocando seus seios pequenos feito essas frutas perfeitas de feira orgânica que ela costuma frequentar, o sabonete em atrito com suas qualidades mais bonitas. Confesso que quase estraguei tudo, cheguei a levantar da cama pra me meter com ela embaixo do chuveiro, tomá-la pra mim e cantar no seu ouvido aquela do Cazuza que fala de flor e bebê, mas me contive. Voltei pra cama e quase triste fiquei só ouvindo os ruídos, esperando ela adentrar o quarto. Toalha na cabeça, roupão, agora assovia qualquer coisa sem importância, abre o guarda-roupa, os ruídos... se veste com mais vagar que de costume e vem me acordar com beijos. Resmungo qualquer coisa quase agressiva, ela persiste. Mais beijos, beliscões suaves, risos, cócegas e eu a mando pra puta que a pariu. Silêncio. Ela sai. Não fecha a porta. Alguma coisa dentro de mim quer sair, mas eu a mantenho ali. 
     Agora é só esse silêncio constrangedor. Eu não a ouço na cozinha, não faz café, não come nada. Talvez porque sou eu quem faz o café todas as manhãs. Desde que eu tô com ela, eu acordo cedo, alguma coisa mudou em mim, o que não impede que eu siga nessa luta com essa quase dor aqui dentro. Ela estala o isqueiro. Quase a ouço tragando a fumaça. Sei que tá debruçada na janela, olhando a cidade acordando lá em baixo no dia do seu aniversário e eu não vou levantar pra lhe desejar os meus parabéns, lhe desejar um dia maravilhoso. Isso não faz parte do plano. A quase dor dentro de mim desaparece pra dar espaço pra esse sentimento quase bom. Recomponho-me, “a impaciência fodeu o gato”, não é assim aquele ditado? Então, espero ela sair. Ela sai batendo a porta. Vou até a janela, acendo um cigarro e a vejo caminhando pequenininha lá embaixo. Alguma coisa dentro de mim... sei lá.
     Enrolo um fumo e me jogo no sofá. Agora é esperar o tempo escorrer melancólico entre momentos de expectativa e taquicardia. Uns acordes de blues no violão, três poemas do Bukowski, um parágrafo de Chandler, uma sacada na Playboy do mês, youtube, redtube, uns blogs de gosto duvidoso. Evito facebook pra evitar problemas. Brinco com o gato, tento esboçar um conto, enrolo outro, entro em pequenos devaneios absurdos sacando as pessoas lá embaixo, ligo a tv, abaixo o som e convoco Belchior pra me fazer companhia. Até lavo a louça. Às onze e meia desligo o celular e caio fora. Deixo esse bilhete sobre a mesa: “Precisei resolver umas paradas”, sem tchau, sem beijos e sem parabéns.
        Imagino que ela nem almoçou. Não só por que sou eu quem sempre faz o almoço. Desde que eu tô com ela, eu tenho me dedicado com o mó carinho a essa coisa de culinária, alguma coisa mudou em mim, o que não impede que mais uma vez, agora bem mais que meio termo, eu sinta essa dor aqui dentro... mais uma vez... tento me recompor, “a ansiedade matou o gato”, não é assim aquele ditado? Então, sigo caminhando. Me recomponho, tenho muito trabalho pela frente.
      O dia cai dando espaço pruma noite precocemente fria, cinza, sem estrelas. Perfeita. Sorrio orgulhoso inalando o aroma vindo do forno. Uma lasanha de berinjela aos quatro queijos que ela tanto gosta e que acabou se tornando a minha especialidade. É que desde que eu tô com ela... bem, cê sabe. Envolto num papel azul espelhado, bem bonitão mesmo, tem esse exemplar volumoso com fotos do Sebastião Salgado que teria me custado uma nota se eu não tivesse meios de apropriação mais adequados ao meu orçamento. Os vinhos também, teriam me custado o mesmo, cada garrafa. Consegui três. Pelo bolo de chocolate com morangos e outros trocinhos em cima, escrito o nome dela em caligrafia gótica, eu paguei. Paguei adiantado até. Uma semana antes quando tive essa ideia da surpresa. Comprei até velas, daquelas que fazem um fogaréu dos diabos. No mercado expropriei uns queijos com etiquetas de preços abusivos que eu não achava correto pagar. Comprei as berinjelas. Cebola e alho já tinha em casa. Sigo sorrindo orgulhoso e, agora, quase feliz. Enrolo um fumo e me atiro no sofá, esperando muito em breve ouvi-la abrindo a porta.
      Ela se atrasa dez minutos e eu penso que tudo bem. Mais dez e eu penso em desgraças terríveis envolvendo caminhões desgovernados e sem freios, sequestros, assalto à mão armada e homicídios com requintes de crueldade. Meia hora e eu não me sinto bem. O fumo agindo contra mim, uma certeza absurda de que eu devia ter acordado e feito café, um café especial, e a gente ia almoçar junto, um almoço especial, e a noite a gente ia beber vinho e comer lasanha e... e agora ela tá morta! Não consigo me recompor. Tento e não consigo. O tempo escorre melancólico entre momentos de frustração, arrependimento, taquicardia e ideias suicidas. Às vinte e quarenta e quatro ela chega. Bêbada. Olhos denunciando as lágrimas que lhe borraram a maquiagem. Me encara cambaleante como se eu fosse dois. Quero lhe dizer “parabéns meu amor. Cê achou que eu tivesse esquecido, né?!”, mas não digo nada e nem me movo quando o primeiro jato de vomito me atinge no peito. Espero os próximos achando que eu os mereço, mas sem muita certeza. 
     A levo quase desmaiada pro banheiro, tiro sua blusa, sua calça, deslizo sua calcinha por suas pernas de atleta juvenil e a coloco embaixo do chuveiro, a água quente tocando seus seios pequenos feito essas frutas perfeitas de feira orgânica que ela costuma frequentar, a água quente em atrito com suas qualidades mais bonitas e ela balbucia enrolando a língua: “Hoje é meu aniversário”. Tento dizer que sabia, que tava tudo armado, que tem lasanha de berinjela, vinho, bolo de chocolate com morango e outros trocinhos e seu nome escrito em caligrafia gótica e aquele livrão embrulhado num papel bonito, mas ela não tá me ouvindo. A levo pra cama e antes de apagar ela volta a balbuciar, agora com a língua em nós: “Eu fui comemorar sozinha”.