Kleber Felix

UM SUSPOSTO ARMAGEDON


     Era só o que faltava. O crítico de arte colou na minha. Era uma festa bacaninha com tipos bacaninhas, bebidas bacaninhas e esse crítico de arte na minha cola. Parece que ele leu qualquer merda que escrevi em algum fanzine vagabundo e agora quer vomitar nos meus ouvidos todas as suas impressões e sensações e sugestões pra melhorar a minha escrita e quem sabe até me descolar uma penúltima cadeira (a princípio) na Academia Municipal de Letras. Desconfio que ele tá a fim de comer minha bunda ou que eu coma a dele ou os dois, tanto faz. O caso é que comer ou dar a bunda pra críticos de arte, frequentar festas bacaninhas com tipos bacaninhas, bebidas bacaninhas, não é a minha. Não faz minha cabeça, saca? Eu só tava ali por conta desse pessoal bacaninha que me convidou pra ler uns poemas com cachê simbólico de 80 pila, mais bebida na faixa. Uma proposta que é quase chantagem prum escritor quebrado, recém-penabundeado e quase alcoólatra. Já faz dez minutos que terminei minha leitura, recebi e embolsei minha grana – não toquei nas bebidas, cê sabe, eram muito bacaninhas – e tô saindo fora pra descolar uma dose de conhaque no buteco mais próximo quando me deparo com esse cataclismo em vestido florido adentrando o lugar, ao mesmo tempo que o crítico de arte cola na minha. Vou deixando ele falar e acompanhando aquela arma nuclear em vestido florido sorrindo de forma devastadora, apertando mãos e dando beijinhos nas faces bacaninhas de uma porção de tipos bacaninhas. O crítico de arte persiste, agora ele quer ler minha mão, porque acha que nos conhecemos de outras vidas. A napalm em vestido florido agora senta, cruza as pernas e eu tenho certeza que algum continente do mapa acaba de ir pros ares. O crítico de arte agora conhece minha vida ancestral, alguma coisa a ver com clãs e neve, búfalos, espadas, flechas e uma briga entre famílias que nos separou por vidas e mais vidas, mas agora a gente se reencontrou. O molotov em vestido florido segue explodindo coisas, acende um cigarro e traga fumaça causando desgraça e confusão. O crítico de arte intercepta um garçom e municia-se de dois copos. Saca de dentro do bolso do paletó uma garrafinha de whisky, serve os dois copos, me entrega um e sugere o seguinte brinde: “ao nosso reencontro”. Algum babaca bacaninha interrompe a música bacaninha e geme qualquer coisa bacaninha no microfone e a catástrofe em vestido florido caminha até ele, arma-se de outro microfone e diz: “boa noite...”. Eu dou a bunda pro crítico de arte se mais alguma porra de continente não foi pro saco. Não vejo nem ouço mais nada, só esse “boa noite” ecoando ébrio na minha cabeça recém-saída da abstinência e ela sorrindo, agora destruindo tudo ao meu redor. Agora somos só nós dois. Ela senta, cruza as pernas e sorri, mas não há mais nada a destruir, a não ser minha alma. Ela lê o título do poema: “Toda Primavera meu coração se enche de flores”. Daí começa a declamar...
     Quando ela termina, eu olho em volta e tá tudo ali, incorruptível. A festa bacaninha com os tipos bacaninhas, bebidas bacaninhas e o crítico de arte que agora me declama poemas em aramaico ou qualquer língua maldita e eu não aguento sua voz impertinente adentrando meus ouvidos ao mesmo tempo em que a música bacaninha começa de novo a soar e alguns dos tipos bacaninhas levantam os braços e emitem gritinhos indescritíveis que, imagino, devam servir pra alguma coisa, mas não tenho certeza de nada. Só sei que essa menina de vestido florido e sorriso inocente que acabou de ler o poema mais... assim, mas... sou incapaz de encontrar um adjetivo que caiba... simplesmente a vejo caminhando de volta e sentando e cruzando as pernas de um modo tão inofensivo que tenho certeza de que minha casa tá lá, intacta. Me despeço do crítico de arte sobre protestos eloquentes e exagerados e caio fora. Já na rua, boto a mão no bolso pra conferir os 80 pila, pensando que serão muito úteis já que o mundo, ileso, seguirá sendo o que é.