DELÍRIO PROFÉTICO METALINGUÍSTICO
Ela disse que queria cortar a própria garganta enquanto me cavalgava a pica.
Disse isso me olhando com uma espécie de tesão que imagino que seja o dos legistas
solitários recebendo os rabecões da madrugada e encontrando corpos de meninas jovens
em bom estado de conservação. Eu não soube o que responder, apenas imaginei como
seria a visão de uma lâmina penetrando aquele pescoço magro e branco, a carótida
proeminente, abrindo um sorriso paralelo ao sorriso sacana que ela estaria, com minha
rola toda enterrada em sua boceta.
O cadáver de Rimbaud estaria vendo tudo isso do deserto. Vejo as santas das
janelas dos programas sensacionalistas de domingo pintadas em vermelho nos
esguichos de suas artérias repartidas. Pingos manchando os lençóis brancos e o meu
corpo, em jatos quentes, pegajosos e rubros. Lembro-me de matadouros antiquados,
lembro-me de animais virados do avesso por curtidores. Ela me disse isso de uma forma
que imaginei sincera, uma forma torta de me dizer que viveria o resto da vida comigo,
mesmo que esse resto fossem alguns minutos antes de seu corpo enrijecer e adquirir
uma cor azul, com um bife insosso pulando para fora de seu pescoço.
Todos os dias eu procuro andar por ruas vazias quando saio para cumprir minhas
obrigações, sempre desejando voltar pra casa o mais rápido possível. À noite a encontro,
sentada em minha cama, e a encaro como um espírito malicioso querendo me derrubar
dos cavalos oníricos que tento domar em meus delírios de pânico e preguiça. Há algo de
odioso que me atrai naquele jeito estranho dela. Algo de asqueroso, algo de mesquinho.
Percebo covardias inocentes se escondendo naquelas palavras ácidas que ela usa de
quando em vez.
Isso, de certa forma, me agrada, de uma maneira que só meu senso ético
aleijado se agradaria diante de uma situação tão pitoresca quanto ela, me encarando com
seus olhos tesudos, dizendo que cortaria sua garganta me cavalgando a pica.
Saímos para pescar demônios uma noite dessas. Saímos com arpões de prata
ungidos com o sangue de um bode velho e preto. Vimos um mendigo acordar de um
pesadelo ruidoso, mijar em volta do próprio corpo e virar pedra de sal. Nesse momento
talvez que eu tenha começado a gostar dela. Quando olhei para um bueiro qualquer e vi
satanás sorrir para mim e me chamar lá pra baixo, eu soube que era isso mesmo. As ruas
que sempre odiei continuaram odiosas. Porém havia sangue, entretanto, no calcanhar das velhinhas carpideiras descansando em suas cadeiras de plástico ao portão de casa,
cuspindo fogo. Sentei em minha cama nessa mesma noite e aguardei com que minha
amada morresse, onde quer que ela estivesse. Só assim para aproximar meus
pensamentos de quem gosto, imaginei, desejando a morte enquanto distante. Imaginei-a
num fosso de jacarés famintos, sendo esquartejada por bocas podres. Em seu estômago
cartelas e cartelas de antidepressivos. Um monge árabe jejuaria, milênios depois,
naquele mesmo local onde ela morreu, e se doparia com o espírito antigo do cinismo.
Olhei pela janela e vi exu caveira relampeando o rabo de uma estrela cadente no
céu escuro. Fiz um pedido e ofereci uma maldição em troca. Uma gata preta me roça os
pés e mia vade retro satana numquam suade mihi vana sunt mala quae libas ipse
venena bibas. Passam-se mil anos e depois cinco minutos. Volto no tempo até horas
atrás. O exu volta a me aparecer e diz que sim, ela virá, e morrerá comigo dentro. Ele
me pisca o olho e exige o contrato. Que maldição destinaria àquele djinn?, pensei eu.
Guardei as palavras daquele diabo e lhe prometi retorno imediato quando
recebesse minha parte na contenda. O exu concordou, sombra que era, e se escorou ao
pé da noite antes de ir. A alvorada despontou no horizonte e a ampulheta virou-se de
vez. Começava a contagem até o dia daquela morte lírica. Imaginei os nervos dela como
cordas de cítara, a lâmina um arco de rabeca, rascando um bolero húngaro.
Desde então me esmero em tornar doce o fio de uma faca de carne. Aguardo o
momento de ver o meu bem rasgando, atroz e sexualmente, a própria garganta e me
esguichando sangue. Ejaculando plasma pelo pescoço como um chafariz maldito. Como
naqueles filmes orientais. Como um pornô do leste europeu proibido na Suécia.
Um banquete num triclínio enfeitado de tripas me observa em meio a uma
floresta de videiras. O império romano caído beija a face morta dela no meu ombro.
Desejo ser testado como Jó quando estiver lavado em sangue, com uma defunta presa
no meu pau. E esquecer de vez todos os poemas paposos que sei de cabeça.
Imaginei, imaginei tudo isso olhando naqueles olhos tesudos me propondo
degolações sexuais, e de imediato desviei o assunto, mormente, para outras
desimportâncias que não denunciassem tanto meu interesse especial naquela questão.
Mas, desabafando, tive que me livrar disso tudo. Foi então que desafoguei os punhos da
modorra que me possui normalmente e desabei a escrever este conto.