Frank Vilar

DELÍRIO PROFÉTICO METALINGUÍSTICO

Ela disse que queria cortar a própria garganta enquanto me cavalgava a pica. Disse isso me olhando com uma espécie de tesão que imagino que seja o dos legistas solitários recebendo os rabecões da madrugada e encontrando corpos de meninas jovens em bom estado de conservação. Eu não soube o que responder, apenas imaginei como seria a visão de uma lâmina penetrando aquele pescoço magro e branco, a carótida proeminente, abrindo um sorriso paralelo ao sorriso sacana que ela estaria, com minha rola toda enterrada em sua boceta. 
O cadáver de Rimbaud estaria vendo tudo isso do deserto. Vejo as santas das janelas dos programas sensacionalistas de domingo pintadas em vermelho nos esguichos de suas artérias repartidas. Pingos manchando os lençóis brancos e o meu corpo, em jatos quentes, pegajosos e rubros. Lembro-me de matadouros antiquados, lembro-me de animais virados do avesso por curtidores. Ela me disse isso de uma forma que imaginei sincera, uma forma torta de me dizer que viveria o resto da vida comigo, mesmo que esse resto fossem alguns minutos antes de seu corpo enrijecer e adquirir uma cor azul, com um bife insosso pulando para fora de seu pescoço.
Todos os dias eu procuro andar por ruas vazias quando saio para cumprir minhas obrigações, sempre desejando voltar pra casa o mais rápido possível. À noite a encontro, sentada em minha cama, e a encaro como um espírito malicioso querendo me derrubar dos cavalos oníricos que tento domar em meus delírios de pânico e preguiça. Há algo de odioso que me atrai naquele jeito estranho dela. Algo de asqueroso, algo de mesquinho. Percebo covardias inocentes se escondendo naquelas palavras ácidas que ela usa de quando em vez. 
Isso, de certa forma, me agrada, de uma maneira que só meu senso ético aleijado se agradaria diante de uma situação tão pitoresca quanto ela, me encarando com seus olhos tesudos, dizendo que cortaria sua garganta me cavalgando a pica. 
Saímos para pescar demônios uma noite dessas. Saímos com arpões de prata ungidos com o sangue de um bode velho e preto. Vimos um mendigo acordar de um pesadelo ruidoso, mijar em volta do próprio corpo e virar pedra de sal. Nesse momento talvez que eu tenha começado a gostar dela. Quando olhei para um bueiro qualquer e vi satanás sorrir para mim e me chamar lá pra baixo, eu soube que era isso mesmo. As ruas que sempre odiei continuaram odiosas. Porém havia sangue, entretanto, no calcanhar das velhinhas carpideiras descansando em suas cadeiras de plástico ao portão de casa, cuspindo fogo. Sentei em minha cama nessa mesma noite e aguardei com que minha amada morresse, onde quer que ela estivesse. Só assim para aproximar meus pensamentos de quem gosto, imaginei, desejando a morte enquanto distante. Imaginei-a num fosso de jacarés famintos, sendo esquartejada por bocas podres. Em seu estômago cartelas e cartelas de antidepressivos. Um monge árabe jejuaria, milênios depois, naquele mesmo local onde ela morreu, e se doparia com o espírito antigo do cinismo. 
Olhei pela janela e vi exu caveira relampeando o rabo de uma estrela cadente no céu escuro. Fiz um pedido e ofereci uma maldição em troca. Uma gata preta me roça os pés e mia vade retro satana numquam suade mihi vana sunt mala quae libas ipse venena bibas. Passam-se mil anos e depois cinco minutos. Volto no tempo até horas atrás. O exu volta a me aparecer e diz que sim, ela virá, e morrerá comigo dentro. Ele me pisca o olho e exige o contrato. Que maldição destinaria àquele djinn?, pensei eu. 
Guardei as palavras daquele diabo e lhe prometi retorno imediato quando recebesse minha parte na contenda. O exu concordou, sombra que era, e se escorou ao pé da noite antes de ir. A alvorada despontou no horizonte e a ampulheta virou-se de vez. Começava a contagem até o dia daquela morte lírica. Imaginei os nervos dela como cordas de cítara, a lâmina um arco de rabeca, rascando um bolero húngaro. 
Desde então me esmero em tornar doce o fio de uma faca de carne. Aguardo o momento de ver o meu bem rasgando, atroz e sexualmente, a própria garganta e me esguichando sangue. Ejaculando plasma pelo pescoço como um chafariz maldito. Como naqueles filmes orientais. Como um pornô do leste europeu proibido na Suécia. 
Um banquete num triclínio enfeitado de tripas me observa em meio a uma floresta de videiras. O império romano caído beija a face morta dela no meu ombro. Desejo ser testado como Jó quando estiver lavado em sangue, com uma defunta presa no meu pau. E esquecer de vez todos os poemas paposos que sei de cabeça. 
Imaginei, imaginei tudo isso olhando naqueles olhos tesudos me propondo degolações sexuais, e de imediato desviei o assunto, mormente, para outras desimportâncias que não denunciassem tanto meu interesse especial naquela questão. Mas, desabafando, tive que me livrar disso tudo. Foi então que desafoguei os punhos da modorra que me possui normalmente e desabei a escrever este conto.