Fiódor Dostoiévski

NIÉTOTCHKA NIEZVÂNOVA (Trecho: já relatei o meu despertar)

Já relatei o meu despertar do sono da primeira infância, o meu primeiro ato na vida. Meu coração foi ferido desde esse instante, e meu desenvolvimento iniciou-se com uma velocidade extraordinária, cansativa. Não podia mais satisfazer-me apenas com as impressões exteriores. Comecei a pensar, a julgar e a observar; mas esta observação teve lugar tão cedo, de modo tão antinatural, que minha imaginação não podia deixar de transformar tudo a seu modo, e de repente eu me encontrei num mundo peculiar. Ao meu redor, tudo passou a assemelhar-se à história fantástica que meu pai me contava com frequência, e que eu não podia deixar de aceitar, naquele tempo, como a pura verdade. Surgiram-me então estranhas ideias. Percebi muito bem (mas não sei como isto sucedeu) que vivia numa família esquisita e que meus pais não se pareciam de modo algum com as pessoas que eu então conhecia. "Por que - pensava eu - vejo as demais pessoas diferentes de meus pais, mesmo no aspecto exterior? Por que via o riso em outros rostos e por que ficava tão surpreendida, no mesmo instante, de que no nosso cantinho ninguém risse, ninguém sentisse alegria?" Que força, que motivo me obrigou, a mim, uma criança de nove anos, a prestar tamanha atenção a cada palavra das pessoas que me acontecia encontrar na nossa escada, ou na rua, quando, ao anoitecer, cobrindo os meus farrapos com um velho xale de minha mãe, eu ia à venda com umas moedas de cobre, para comprar um pouquinho de açúcar, chá, ou pão? Compreendi, e não me lembro mais como isto se deu, que em nossa mansarda pairava sempre uma aflição intolerável. Atormentava-me, procurando adivinhar a causa disso, e não sei quem me teria ajudado a decifrá-lo a meu modo: acusei minha mãezinha, considerei-a malvada para com o meu pai, e digo mais uma vez: não sei como uma noção tão monstruosa pudera formar-se em minha imaginação. E quanto mais me ligava ao meu pai, com tanto maior intensidade odiava a minha pobre mãe.