Fernando Ramos

PRÓLOGO

O homem, que desconhecia o próprio fato de ser ele mesmo Deus, com o tempo, foi ficando vaidoso demais: foi quando quis criar Deus apenas para que pudesse provar a Ele que também poderia ser Deus se quisesse. No oitavo dia da Criação – que foi também o oitavo dia do coma induzido a que Órion obrigou seu filho Deus a se submeter para que assim alcançasse o autoconhecimento – o homem criou seus paraísos artificiais, seus campos magnéticos normativos, seus medos e complexos, por ironia, primitivos. É claro, quando apenas uma dentre milhares de espécies animais acredita ou intui, conscientemente, a existência do conceito de Deus, que essa tal espécie deva ser o próprio conceito em si; ou, ao menos, a consciência de Deus. Mas essa compreensão tardia resultou na renegação da natureza humana preponderante, foi num mundo distante, inda carregado de todos os primeiros mistérios. Inda longe dos monastérios, sacrilégios, dilúvios e romarias. E muito antes da gravidez santa da primeira Maria. Deus é a lógica intangível do acaso, o cão guia da cegueira dos tempos presentes, o delicado equilíbrio da energia explosiva do Universo, a misteriosa transmutação do nada em tudo e do tudo de volta ao nada. É tudo que acaba e tudo que inicia, e também o que inda não se sabia. Deus é o tempo e o tempo é Deus, a (im)permanência dinâmico-estática do real, de toda a matéria viva, concebida junto ao tempo e espaço, os delimitadores infinitos das possibilidades da natureza e acima das forças destrutivas de nossos pequenos e medíocres deuses transitórios. Deus é a contradição criadora dos conceitos ambivalentes, a tensão dialética que sustenta o peso dos atômicos ímpetos terrenos e extraterrenos. Por outro lado, também é verdade que Deus, inda jovem, não pôde controlar seus impulsos e acabou comendo e engravidando sua mãe, Hera. Com medo da clássica represália esfaimada do pai - Órion em meu Novíssimo Evangelho e Chronos para os gregos, e sem poder dar a desculpa inócua de que a camisinha estourou, Deus tentou abortar sua transgressora criação. Por vingança de Órion a seu neto-filho indesejado, o aborto foi sabotado e nasceu uma criatura aberrante de uma gestação extremamente prematura - menos de uma semana - motivada por um imenso sentimento de culpa herdado da mãe, tido como natural pelo inocente nascituro. A aberrante criatura e todos seus descendentes carregariam pela eternidade as marcas do vício e da fraqueza de Deus. O desvio carnal de Deus foi o descaminho do destino iluminado dos netos de Órion. Quantas deusas das virtudes não ficaram chupando o dedo! Mas não adiantava: Deus só queria comer a mãe. A serpente da macieira e a cruz do nazareno foram, respectivamente, o segundo e o terceiro pecados de Deus, que não pôde conter a maligna tentação de se vingar de Órion, que pouco a pouco se afeiçoava à criatura humana - da qual Deus, em resposta, afastava-se mais, que em garranchos desenhava os seus caminhos labirínticos, como órfãos esquecidos e inda gratos pela concepção. Quando Nietzsche, a reencarnação de Baco e Apolo, proclamou a morte de Deus, quis se referir, obviamente, à maior dentre todas as autoridades espirituais do Universo. Quem morreu, na verdade, foi Órion, poucos minutos – luz antes da crucificação de Cristo, o favorito do vovô, antes comedor de filhos, mas agora gente fina. Com muito esforço dos propagandistas terrenos dessa força obscura que se tornou, então, Deus, seu maior erro pôde ser capitalizado como seu grande trunfo, por meio da aparentemente inocente inversão da lógica natural do instinto humano. Instaurava-se o sadomasoquismo redentor, a panaceia eletrizante que liberava o prazer reprimido pela culpa indissociável de nossa carne. E então começaram a varrer os bêbados, os loucos e os artistas das ruas. Foi o princípio do fim. Foi quando terminamos de mostrar a bunda para esse safado. Somos todos uns pagãos covardes e enrustidos. Não pense no outro, pois o outro não pensa, o outro não tem consciência, não queira extrapolar a subjetividade de sua experiência de vida, não queira desfazer o que já está contratado. Com a crucificação de Cristo, Deus simbolicamente marcou a condenação dos homens à exploração e à mediocridade. O ano zero marca o início da execução desse projeto, friamente premeditado. Lúcifer, o portador da luz - assim como Jesus, a estrela da manhã - o mais belo e inteligente dos anjos, foi o único a perceber a gestação desse plano e, ao se insurgir, foi condenado ao ostracismo, degredado para terras sufocantes e inabitáveis. Foi quando a lógica se inverteu e tudo o que antes era uno passou a ser dividido, para mascarar a maldade divina com a dogmatização da separação entre bem e mal, meros impulsos deformados do instinto inferior da criatura maldita. E assim nasceram os fetiches morais, que usurparam grande parte da inteligência e, por conseguinte, da capacidade de comunicação entre os homens. Cada povo, cercado em sua língua, inventou a própria moralidade e, pouco a pouco, decidiram estabelecer regras para sustentar a guerra mundial em uma perenidade relativamente segura. E assim o homem mais uma vez fora proibido de dialogar com Deus. Multiplicariam infinitamente as Torres de Babel, mas em nenhuma haveria paz ou felicidade. Os homens teriam mais medo do chão quanto mais distantes dele estivessem, assim como já acontecia a nosso Pai. Encastelados em nossos paraísos verticais, somos condenados porque somos inocentes, somos violados quando somos coerentes, são condescendentes quando somos corruptíveis, somos endeusados quando somos corruptores; masturbamo-nos ouvindo o selvagem grunhido de violinos sendo queimados.