Davy Nabuco

30: UM RELATO

Não tenho vontade de definir uma só coisa neste mundo. Não tenho vontade de repensar as concepções mal amarradas que me norteiam a vida. Não tenho vontade de transparecer uma imagem clara, que de tão deturpada por olhares míopes, acabará por moldar-se na forma por que lhe tomavam, Não tenho vontade de despir-me dos espinhos que me restam, de perturbar-me com as complexidades da sociedade ou de consagrar pelas minhas ações qualquer vício, conflito ou desalinho. Nem tampouco de demonstrar boas intenções, sentimentos nobres ou qualquer reconforto para o coração desordenado de quem quer que seja. Não teno vontade de dar um passo através da porta da frente e submeter as minhas tortas feições à luz do sol imperiosa, que com seus raios dourados há de turvar-me a vista. E se depender da minha providência, essa dor de cabeça me acompanhará por mais vinte ou trinta anos. Ou talvez mais, quem sabe. Não tenho vontade. Não quero e não dei de ter qualquer vontade. E não me iludirei com desejos. De expectativas quebradas, só quero as dos meus parentes. Só há de restar-me a esperança. Que ela me sirva ao menos para fazer com que essa tábua de madeira se despedace em mim farpas penetrantes, e que a mãe dessa criança histérica a leve para algum inferno na superfície terrestre, ou em qualquer outra longe de mim. Céus.